“A mais longa das jornadas começa sempre com o primeiro passo” (provérbio chinês)
Tive duas ricas e inesquecíveis experiências como professora de Literatura Inglesa: a primeira na UFPB, em \joão Pessoa, (entre os anos de 1970 e 1992) e a segunda na UEPB, em Campina Grande, (entre os anos de 2003 e 2013). Meus cursos eram iniciados, invariavelmente, com a apresentação aos alunos dos primórdios da literatura inglesa, da Idade Média, com o poema épico “Beowulf”, uma obra seminal dentro do panorama da literatura inglesa. Contudo, o interesse nesta obra está restrito aos estudiosos da história literária e cultural britânicas. Foi, portanto, com muita surpresa que encontrei um exemplar da obra, em uma feira de HQ, no Espaço Cultural, em João Pessoa. numa versão Graphic novel, em português, assinada por Santiago Garcia e David Rubin, traduzida por Alexandre Calliari, trazendo um primoroso e inspirado epílogo do espanhol de Madrid, Javier Olivares. Uma rica edição em cores, de tamanho 31 x 21 cm, capa dura, uma produção da Pancrom Indústria Gráfica, datada de novembro de 2018. É claro que por trás desse achado está o talento e a sensibilidade, diria até, o faro de antiquário do produtor cultural, empresário do ramo dos quadrinhos Manassés Filho, proprietário da Comic House, que hoje, infelizmente, está restrita ao meio on line, subsistindo em sua forma física, apenas quando participa de feiras de HQ.
Meu primeiro contato com o poema “Beowulf” deu-se nos idos da década de 1970, quando cursava mestrado na Universidade de Denver, Colorado, Estados Unidos. Foi um choque para mim, entrar em contato com aquela língua estranha, o Anglo Saxão, a língua em que o poema foi originalmente escrito. O poema conta a história do herói Beowulf, que luta para defender seu povo (os dinamarqueses) contra a fúria destruidora do monstro Grendel, que na obra é identificado como “o filho de Caim”.
A obra é um “prato cheio” para a aplicação das teorias de Joseph Campbell sobre a jornada do herói, que busca identificar o caminho perseguido pelo herói até atingir seu objetivo. No caso de Beowulf, acompanhamos o nascimento do herói, quando ele se oferece para defender os daneses, os súditos de Hrothgar, que festejam suas vitórias no salão festivo de Heorot. O herói se define como “Bewulf, filho de Ecgtheow, rei dos Wegmlunding, vassalo de Hygelac, rei dos Godos. Ele diz que liderou catorze nobres guerreiros através dos mares até aquela orla onde tinha chegado. A sua saga contra o monstro Grendel tem várias etapas e ele consegue derrotar o monstro em todas elas.
A leitura de “Beowulf” compensa e nos introduz no reino da coragem e da aventura, tão fértil e perseguido por escritores mais modernos, como Tokien e tantos outros depois dele, até os nossos dias.
Ainda dentro da tradição medieval inglesa temos Geoffrey Chaucer, com suas “Lendas da Cantuária’, com seu variado panorama de personagens menos heroicos, mais próximos do homem e da mulher comuns.
Bem, não exagero ao dizer que Sam Raimi é um de meus diretores favoritos.
Apesar de ter sido impactado desde cedo, como boa parte da geração que cresceu nos anos 2000, pelo papel de Raimi como diretor dos filmes do Homem-Aranha - a primeira versão, com Tobey Maguire no papel principal - foi só muito tempo depois que comecei a atentar não só no papel, mas também no estilo, do diretor. E isso graças a “Uma Noite Alucinante” (Evil Dead II, 1987).
Para quem nunca viu esse filme, ele é uma sequência/reboot do “A Morte do Demônio” (The Evil Dead, 1981), que nos apresenta a história de um grupo de jovens que fica preso em uma cabana no meio de uma floresta, sendo perseguidos pelos espíritos demoníacos invocados a partir da leitura do Necronomicon. Mas, enquanto o primeiro filme é um filme de terror no sentido mais tradicional, “Uma Noite Alucinante” parte para um misto de terror, humor negro e ação, apresentando praticamente a mesma história, mas adicionando novos elementos e alterando uma série de pontos.
No entanto, o que realmente me pegou nesse filme, e que me fez correr atrás de toda a filmografia de Sam Raimi, foi a energia que parecia pulsar do filme. Sendo um projeto realizado entre amigos de longa data, existia, de fato, uma grande diversão no período das filmagens, mas também é muito mais que isso. Com uma câmera extremamente fluída, Raimi é um daqueles diretores que conseguem levar o espectador por um passeio visual, colocando-o em movimento junto com seus personagens enquanto apresenta tomadas e transições únicas. Não só isso, ele possuí um senso de timing e de ritmo espetacular, conseguindo contar uma história em um ritmo acelarado, mas que nunca chega a ser corrido, e alternando os momentos de humor, horror e ação com uma maestria única.
Essas características sempre acompanham os filmes do diretor que, mesmo em suas produções mais fracas, consegue criar uma experiência única e divertida, destoando sempre do feijão com arroz das grandes produções. De fato, tenho para mim que, mais do que um contador de histórias, Raimi é um apaixonado pelo cinema, e é essa paixão que ele sempre deixa aparecer em suas produções.
Mas então, toda essa introdução está aqui apenas para apresentar aquele que considero ser um dos filmes mais fascinantes do diretor mas que, ainda assim, não é tão conhecido ou comentado como a franquia Evil Dead ou suas produções mais recentes, como o próprio Homem-Aranha ou o Arraste-me para o Inferno: Darkman.
Conhecido por aqui com o título de “Darkman - Vingança sem Rosto” (Darkman, 1990), o filme nos apresenta a história do cientista Peyton Westlake, que tem sua pesquisa sobre peles sintéticas brutalmente interrompida pelo ataque de uma gangue, que destrói seu laboratório. Apesar de sobreviver à explosão, Peyton é terrivelmente desfigurado pelo fogo, sendo submetido a uma cirurgia experimental que corta parte de seus nervos, impedindo-o, assim de sentir qualquer tipo de dor ou mesmo a sensação de tato. Por mais que isso possa lhe parecer uma benção, o tratamento que o livrou da dor traz, como efeito colateral, a perda de sua capacidade de regulação emocional, além de resistência e força sobre-humana em situações de grande estresse devido à liberação de adrenalina desregulada de seu sistema nervoso. Restaurando seu laboratório, o cientista parte então em busca de vingança, utilizando seus novos “poderes” e suas peles sintéticas - que não pode ficar muito tempo exposta à luz - ao mesmo tempo em que busca retomar a vida que perdeu.
E vamos ficar por aqui para evitar entrar no terreno dos spoilers.
Se você nunca viu Darkman, eu recomendo bastante a experiência. Apesar da trama em si ser algo relativamente simples, a atuação de Liam Neeson como Peyton Westlake já é, por si só, digna de ser vista. Aqui, o ator dá ao personagem um peso e uma gravidade memoráveis, uma vez que o ator dá um show nas transições repentinas e abruptas emocionais de seu papel, e isso sem jamais descambar para o ridículo ou para o muito exagerado.
Não só isso, a própria construção de mundo de Darkman é algo digno de nota. Numa época em que filmes baseados em quadrinhos ainda eram uma parte bem pequena do meio cinematográfico, é curioso ver como a inspiração dos quadrinhos é bem forte no filme, ainda mais para um personagem original. Tanto no estilo quanto na narrativa, é notável o quanto as histórias em quadrinhos influenciam a construção desse mundo, seja no drama de Peyton e em sua relação conturbada com Julie Hastings (Frances McDormand), ou mesmo no tom exagerado e nas ações caricatas de seus vilões. Estes, são um espetáculo à parte, mais parecidos com personagens tirados de das histórias de Dick Tracy, cada um marcado por maneirismos, tiques e tocs extremamente específicos.
E unindo tudo isso, temos o estilo único de Raimi, com sua câmera fluída, tomadas inusitadas, cortes e transições cuidadosamente calculados, e aquela energia frenética, maníaca, até, que sempre conseguimos ver em seus melhores momentos.
Bem, e se isso tudo ainda não foi o suficiente para te convencer a dar uma chance ao filme, considere que temos aqui uma planta baixa daquilo que o diretor fará anos depois em Homem-Aranha.
Lá estava a notícia! Hoje, 06/04, às 15h, faleceu em casa, em um apartamento no bairro da Lagoa, na Zona Sul do Rio, o cartunista, Ziraldo.
Um dos meus primeiros pensamentos após lamentar a morte do grande Mestre, foi uma certa tranquilidade por saber que ele partiu dormindo.
É estranho compor um texto sobre alguém que não se conhece, mas que de alguma forma se fez tão presente desde a minha infância. Sendo assim, descrever a genialidade de Ziraldo é uma tarefa homérica tanto por sua importância artística, diversidade de estilos e sua riqueza textual.
Nascido em 24 de outubro de 1932 em Caratinga (MG),era o mais velho de uma família com sete irmãos. Seu nome incomum era fruto da combinação do nome da mãe (Zizinha) com o nome do pai (Geraldo).
Desde criança despertou interesse pelas artes, e aos seis anos teve seu primeiro desenho publicado no jornal “A Folha de Minas”.
Esse primeiro contato entre sua arte e jornal veio a se consolidar em 1950, com o início de sua carreira ao publicar na revista “Era uma vez...” e quatro anos mais tarde, vem a produzir uma página de humor para o jornal “A Folha de Minas.
Em 1957, formou-se em Direito na Faculdade de Direito de Minas Gerais, em Belo Horizonte. No mesmo ano, entrou para o time das revistas “A Cigarra” e, depois, a icônica “O Cruzeiro”. Em 1958, casou-se com Vilma Gontijo, sua namorada tinha sete anos e com ela nasceram seus filhos Daniela, Fabrizia e Antônio.
Na década de 60, destacou-se por trabalhar também no “Jornal do Brasil”. Assim como em “O Cruzeiro”, publicou charges políticas e cartuns. São dessa época os personagens Supermãe, Mineirinho e o emblemático e ainda atual, Jeremias, O bom, que apresenta uma bem-humorada crítica à sociedade e seus bons costumes.
Um fato curioso nesse período, é que em paralelo a sua produção dos citados personagens, ele concretizou seu sonho de infância ao produzir de forma autoral suas histórias em quadrinhos que fazia uma grande homenagem a riqueza do folclore de nossa Terra Brasilis, nascendo assim a “Turma do Pererê”, que apresenta as aventuras de personagens como a como a onça, o jabuti, o tatu, o coelho e a coruja
Sua ampla e crítica visão em relação ao seu país, o conduziram a fundar com outros humoristas na mesma década o icônico “O Pasquim”, que com um misto harmônico entre textos, humor, ilustrações, deboche, crítica e personagens inesquecíveis, como o Graúna, os Fradins ou o Ubaldo, o semanário entrou na luta pela democracia e consolidou-se como um dos principais veículos a combater a ditadura militar no Brasil.
Para ter uma ideia da grandiosidade da publicação, o grupo era composto por nomes como: Millôr Fernandes, Henfil, Jaguar, Tarso de Castro, Sérgio Cabral, Ivan Lessa, Sérgio Augusto, Paulo Francis Chico Buarque, Antônio Callado, Rubem Fonseca, Odete Lara, Gláuber Rocha e diversos intelectuais cariocas. E com essa junção de diversos talentos e temas, O Pasquim, transformou-se em um grande fenômeno editorial que inicialmente teve uma tiragem de 20 mil exemplares e chegou a atingir a marca de mais de 200 mil em seu auge, em meados dos anos 1970, se tornando um dos maiores fenômenos do mercado editorial brasileiro.
Mas uma publicação como essa não passaria em branco para órgãos de censura da época, e um dia depois do AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, Ziraldo foi detido em casa e levado para o Forte de Copacabana, mas essa ação não abrandou sua veia crítica.
Seu maior sucesso, “O Menino Maluquinho”, saiu em 1980 desde sua primeira publicação, teve 129 edições, foi publicado em mais de 10 países, vendeu mais de 4 milhões de exemplares. Considerado um dos maiores fenômenos do mercado editorial brasileiro em todos os tempos e que foi adaptado para o cinema em 1995, ganhou uma continuação em 1998 intitulada de Menino Maluquinho 2 - A Aventura, em 2006, ganhou a série, Um Menino Muito Maluquinho, com 26 episódios, sendo exibida pela TV Brasil e 2022 foi produzida uma série animada para a Netflix que acabou concedendo uma indicação ao Emmy 2023 na categoria “Melhor Animação Infantil”.
Entretanto, Ziraldo, era um multiartista com produções que vão além das HQs, em 1969, publicou seu primeiro livro infantil, “FLICTS”. Em 1979, passou a se dedicar à literatura para crianças com obras que mesclavam o lúdico e o educacional como “O alfabeto do Ziraldo” e mais o recentemente o belo e poético “Menina Nina - Duas Razões para não chorar” que foi escrito para ajudar a explicar para a neta Nina sobre a morte da avó, Vilma, que foi mulher do cartunista.
Outro ponto da carreira pouco conhecida de Ziraldo, foram as incríveis composições de cartazes de filmes nacionais durante os anos 60, entre eles, estão para o filme “Os Fuzis” (1962), de Ruy Guerra; “Assalto ao Trem Pagador” (1962), de Roberto Farias; “Boca de Ouro” (1963), de Nelson Pereira dos Santos; “Todas as Mulheres do Mundo” (1966), de Domingos de Oliveira.
O mais interessante desta fase é que muitos deles passam longe de seu característico estilo de desenho e denotam sua versatilidade,
Porém, entre suas obras, uma delas chama a atenção por sua ousadia, o imponente Mural do Canecão, por muitos anos a principal casa de shows do Rio de Janeiro e uma das principais do Brasil.
O mural foi produzido em 1967, ao longo de seis meses de trabalho, e ainda hoje chama a atenção pelo estilo inspirado nos traços de pintores como Pablo Picasso e Cândido Portinari.
Nele podemos ver uma "Santa Ceia" regada a cerveja, em um cenário carioca. Na época, em 1967, em pleno regime militar, a obra foi alvo de críticas e considerada transgressora.
E na fala do próprio Ziraldo “Tem a Arca de Noé com os bichos, tem os Arcos da Lapa, tem a vista do Papa ao Rio de Janeiro. Tem as cariocas chegando para a festa, animadíssimas. Tem o cara celebrando na mesa de bar. Tem o sujeito de porre, tem o cara dando cachacinha para o santo. Tem toda uma visão brasileira sobre o ato de beber. Não tem ninguém comendo. Estão todos comemorando. Tem muitos brindes” diz Ziraldo.
Considerada uma das maiores obras murais do país, com 32 metros de largura por 6 metros de altura, o painel é considerado uma das obras primas de Ziraldo, um homem que viveu e produziu intensamente seu amor à arte e que mesmo nos deixando, seu legado acompanhará inúmeras gerações.