Por Audaci Jr
A cidade de El Camino se vê invadida por uma estranha névoa, na qual todas as realidades se fundem e se desfazem.
A jovem Hermínia embarca com o
desconhecido Arcádio numa fuga por cenários cotidianos, o que acaba se
transformando numa jornada na qual é utilizado o fantástico para tratar
sobre adolescência, intimidade, transcendência e medo.
Logo nas primeiras páginas de Hermínia,
o leitor descobre o quanto as personalidades dos protagonistas
adolescentes são diferentes: ela salta sem se preocupar onde cairá; ele,
que atende pelo nome de Arcádio, é mais prudente, o que não quer dizer
que seja mais seguro de si ou de seus atos.
Quando mais jovem, o rapaz sabe as
consequências de ações impensadas: está marcado no seu rosto. E, assim,
com sua própria cadência, a HQ avança na desconhecida vida dos dois, até
para eles mesmos.
Menos experimental do que Perpetuum Mobile, obra lançada de forma independente e que ganhou recentemente uma republicação pela editora Mino, o álbum do Diego Sanchez ainda carrega um lado simbólico muito forte.
A realidade dissolve suas beiradas por
meio da misteriosa e metafísica névoa que toma a cidade de El Camino.
Seria uma realidade pré-estabelecida ou uma que ainda está por vir,
dependendo dos atos do casal na flor da idade?
Tocando nos assuntos de egos e
“infinitas consciências”, a jornada de autoconhecimento pela inadequação
no mundo em que os dois vivem, Hermínia remete ao clássico O Lobo da Estepe,
do alemão Hermann Hesse (1877-1962). A pista deixada por Sanchez
justamente é o nome da personagem-título, que também está presente no
romance escrito em 1927, ano situado entre a “névoa” de duas Guerras
Mundiais, ou melhor: entre dois “fins de mundo” e suas mudanças.
A condição humana e a busca por identidade também leva ao conto O Aleph,
do argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), bem como o nome da cidade
conecta a obra homônima do espanhol Miguel Delibes (1920-2010), onde a
história também traceja o caminho da vida pelas buscas.
Na escala da curiosidade das referências literárias em Hermínia,
o nome do rapaz aponta o universo que funde o fantástico e o real, uma
homenagem clara ao clã de José Arcádio Buendía e à mágica Macondo de
Gabriel Garcia Márquez (1927-2014), em outro clássico da literatura
mundial, Cem Anos de Solidão.
Há também referência ao pintor-filósofo
francês Nicolas Poussin (1594-1665), tatuada na pele de Arcádio, cuja
expressão em latim – Et in Arcadia – faz ligação com seu nome e, ao mesmo tempo, à morte – também um símbolo de mudança no tarô.
Mais tarde, a tarologia cutânea ainda
apresenta ao leitor a efetivação da mudança no jovem quando ele grava o
símbolo da “Arte”, originalmente chamada de “Temperança”, um arcano
maior das cartas.
Hermínia tem camadas
metafóricas complexas e entrelinhas filosóficas, mas isso não a impede
de se tornar confusa ou enfadonha para quem não quer “entrar no seu
espírito” ou tentar decifrar as suas “pistas”.
Em alguns momentos, a “voz” dos
personagens parece algo simplesmente discursivo, o que perde em força
narrativa para ganhar um espaço particular no divã de ambos.
A arte pontilhada e estilizada de
Sanchez se equilibra entre os hiatos do magenta que destaca bem os seus
desenhos. Fazendo novamente alusão à adolescência, são como os jovens
rabiscando as suas confidências com a caneta de cor mais gritante no seu
“querido diário”.
Novamente, a edição da Mino
é caprichada, com o magenta se misturando no fundo alaranjado da capa
dura e os detalhes em verniz. Com formato 17 x 27 cm, o álbum é impresso
em offset de alta gramatura.
Reflexão sobre o estado de mudança nas
beiradas da realidade, o inconformismo, a fragmentação do ser e suas
inquietações. Um quebra-cabeças que sempre deixa a sensação de que está
faltando algumas peças ou elas não se encaixam, como a vida. Entre os
altos e baixos narrativos, Hermínia consegue sair do conformismo da mesmice e mostrar o seu valor.
Título: Hermínia
Autor: Diego Sanchez
Páginas: 88 • Formato: 17 x 27cm •
Acabamento: capa dura •
R$ 44,00
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(Resenha publicada originalmente no site Universo HQ )