Em Nova York, Estados Unidos, devido ao
alto número de crianças abandonadas – a maioria originada da imigração –
foi criado, em 1854, o programa Orphan Train Riders, considerado até hoje como a maior migração de menores na história da humanidade.
Em sua maioria órfãs, as crianças eram
transportadas ao Centro-Oeste estadunidense em desenvolvimento para
serem adotados por fazendeiros e utilizadas como mão de obra barata.
Em 1920, dentre essas crianças, estão
Jim e Harvey, que, após 70 anos, voltam a se encontrar e a desenterrar
memórias que encontravam encarrilhadas naquela viagem de trem.
Depois de revisitar o bom e velho jazz de Nova Orleans em dois volumes de Bourbon Street (Os fantasmas de Cornelius e Turnê de despedida, ambos lançados no Brasil pela 8Inverso),
o roteirista francês Philippe Charlot toca num assunto totalmente
desconhecido da História norte-americana, que ajudou a formar toda uma
nação, para o bem ou para o mal dos seus protagonistas.
Atualmente com cinco tomos na França, esta edição nacional fecha o primeiro ciclo com os dois primeiros volumes (Jim e Harvey), colocados de modo ininterrupto devido a questões contratuais da BesouroBox com a Bamboo Édition.
No início do Século 19, houve uma
intensa imigração para os Estados Unidos, principalmente por causa da
crise econômica na Europa, em virtude da industrialização e concentração
fundiária.
Com o constante crescimento demográfico
no Leste, era cada vez mais desejada (e ambiciosa) a conquista das
terras do chamado Oeste Selvagem. Desde a construção da malha
ferroviária, a descoberta de ouro, a Doutrina Monroe de “a América para
os norte-americanos”, os conflitos como a Guerra do México (1845-1848) e
a dizimação indígena, a expansão deixou de ser sonho para virar
realidade.
Uma realidade dura, diga-se de passagem,
tanto para o desbravador quanto para os nativos. Uma oportunidade de
amenizar essa concentração populacional de órfãos e meninos de ruas foi o
Orphan Train Riders, programa criado pelo reverendo Charles Loring Brace para solucionar esse imenso problema social em Nova York.
Na teoria, a intenção era boa: tirar os
pequenos de uma vida miserável, de criminalidade e sem perspectivas,
para dar educação, morada e zelo familiar até os 17 anos de idade. Mas
não era bem essa cartilha ditada pelo projeto no decorrer dos anos,
junto à postura negligente dos agentes do programa.
Como em todos os cantos, o ambiente
corruptor não era apenas nas ruas. No desenrolar da trama (baseada em
depoimentos de quem viveu essa situação ou de sua prole), O trem dos órfãos
mostra todos os buracos no sistema que resultaram numa vida indigna
para essas crianças, que eram obrigadas a deixar tudo – identidade,
memórias e até mesmo os verdadeiros pais – para ter uma “segunda”
oportunidade, resumida ao trabalho infantil.
Por mostrar mais a viagem de Jim e seus
dois irmãos menores, o roteirista se concentra nos detalhes da viagem e
da adoção em si. A princípio, pouco se vê do destino dos personagens,
mas pode-se ter uma noção pelas atitudes das pessoas que querem “adotar”
as crianças em cada lugar que o trem para.
Muitos olhavam os dentes como se fosse
gado, outros se queixavam de não ter mais meninas na seleção. Tudo isso
implica no futuro que elas teriam naquele ambiente.
Até o final do programa, no ano da
Grande Depressão, em 1929, estima-se que mais de 250 mil crianças foram
enviadas ao Centro-Oeste norte-americano, estipulando atualmente mais de
dois milhões de descendentes diretos dessas pessoas que tiveram suas
raízes arrancadas das suas vidas.
Philippe Charlot faz um instigante jogo
de idas e voltas entre 1920 e 1990, que mantém a atenção do leitor. No
final, as dúvidas são sanadas e as consequências são bem atadas pelo
roteirista, principalmente num bem engendrado ato de vingança.
Apesar do lado sério, há também espaço
para o cômico, mesmo sendo trágico, vide as ações desesperadas de Jim
para manter os irmãos juntos ou as peraltices de Harvey que remetem a
Tom Sawyer e Huckleberry Finn, clássicos personagens de Mark Twain
(1835-1910).
A bonita arte de Xavier Fourquemin tem
sua origem na tradicional escola da linha clara franco-belga, com
personagens cartunescos interagindo em cenários realísticos e
detalhados. Outro destaque são as paletas de cores sóbrias e precisas
escolhidas por Scarlett Smulkowski.
A edição do selo 8Graphics da BesouroBox tem capa cartonada, papel couché
de boa gramatura, excelente impressão e uma série de extras que mostram
fotografias, mapas e mais informações sobre a história real do
programa.
De negativo, a impressão da capa está
sem tanta nitidez quanto o miolo (e isso não é relacionado ao aspecto
“fantasmagórico” que evoca a memória do personagem presente nela), o
primeiro texto do material extra está muito perto da margem e o formato
(16 x 24 cm) não casa com a diagramação, dando mais espaço acima e
abaixo nas páginas (o original era menos “alongado”, 25 x 32 cm).
Houve também alguma desatenção na
revisão, como a falta do acento circunflexo na sentença “O quê?”, na
página 17, e a redundância no “…há 70 anos atrás!!!”, na 69.
Independentemente disso, a edição
nacional não descarrila em algo mais grave e integra uma soma muito
bem-vinda do material europeu geralmente ignorado no Brasil, assim como
essa passagem da História da formação dos Estados Unidos.
Apesar de fechar um ciclo, fica a
curiosidade de saber mais sobre o destino dos personagens e o desenrolar
da narrativa de Philippe Charlot e Xavier Fourquemin.
Em tempo: para quem quiser saber mais sobre o tema, existe um livro de mesmo nome que saiu por aqui pela Editora Planeta,
escrito por Christina Baker Kline e que já vendeu mais de um milhão de
exemplares. É um romance com base em pesquisas e entrevistas da autora
feitas com homens e mulheres que foram passageiros do obscuro trem.
Título: O trem dos órfãos
Autor: Philippe Charlot, Xavier Fourquemin e Scarlett Smulkowski
Páginas: 104 • Formato: 16 x 24cm •
Acabamento: capa cartonada •
R$ 42,00
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(Resenha publicada originalmente no site Universo HQ )
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