Por Audaci Jr
Somos o que nós nos lembramos, mas a memória não é um registro objetivo e inalterável.
Sabela tenta reconstruir uma parte de
sua história familiar. Ela busca informações sobre o paradeiro do avô,
Francisco Lamas, que emigrou jovem para Cuba, nos anos 1930, e nunca
mais deu notícias.
Chegando a um vilarejo na Galícia, ela
conhece o velho Fidel, um marinheiro aposentado que pode ter sido
companheiro de seu avô numa de suas viagens marítimas.
Contudo, esse senhor de idade avançada
tem muitos problemas para recordar. Há mais fios que se entrelaçam neste
processo de resgate através das memórias de Fidel: outras pessoas,
outras lembranças…
Antes de mergulhar na análise
propriamente dita na obra de maior fôlego de um dos grandes nomes dos
quadrinhos mundiais, Miguelanxo Prado, um parêntese deve ser colocado
aqui: como um oásis, Ardalén preenche a “seca” que o Brasil tinha com relação às obras do autor espanhol.
Além de esparsas histórias curtas em revistas mix como Heavy Metal Brasil e Aventura & Ficção (Abril), a arte de Prado pode ser conferida no especial Sandman – Noites sem fim (lançado em 2003 pela Conrad e republicado em 2014 pela Panini) e na série Cidades ilustradas (Casa 21), na qual retratou Belo Horizonte, em 2003. A única coletânea autoral lançada no país foi Mundo cão, em 1991, pela Abril, no # 26 do selo Graphic Novel.
Com esses isolados exemplos, fica
difícil ter a ciência dos horizontes criativos – tanto no traço quanto
nas histórias – desse essencial quadrinhista. É possível fazer até um
paralelo dessa falha gravíssima do cenário editorial brasileiro para
preservar a memória da obra de Miguelanxo Prado e as confusas lacunas
reminiscentes da cabeça de Fidel, personagem central de Ardalén. Os pequenos pedaços lançados por aqui não oferecem a dimensão oceânica das HQs do autor.
Falando em nacos, é justamente pelos
fragmentos de memória que a construção da figura ausente do avô de
Sabela se constrói. O que nós somos? O que vai ficar de nós na passagem
terrena? Como as memórias sobrevivem nas nossas mentes e são passadas de
maneira geracional? Essas e muitas outras questões podem ser levantadas
no decorrer da leitura.
Existem vários “tipos” de memórias, que
vão desde a coletiva até a metafísica, mas nada é mais cara a cada
indivíduo do que a pessoal, principalmente quando as terminações
nervosas são enraizadas no solo genético, afetivo, familiar.
Sabela se encontra numa encruzilhada com
sua vida em naufrágio a pique. Madura, com cerca de 40 anos, ela está
passando por várias dificuldades que acarretam a sua crise existencial:
ao mesmo tempo em que procura por emprego, passa pelo burocrático
processo de separação conjugal.
Prado preenche a complexidade de ambos
os protagonistas também com outros elementos de igual importância
narrativa, a exemplo de uma série de objetos dispostos na cabana de
Fidel que (a certo ponto) autenticam seus relatos ou de habilidades
esquecidas, como os entalhes de formas marítimas no pedaço de madeira.
Sem as fronteiras da realidade e
fantasia, veracidade e delírio, o autor cria seu próprio universo, que
sempre deixa o leitor com “o pé atrás”. Prado também reforça e “remonta”
essas lembranças com versos, documentos, fotografias, trechos de
enciclopédias, artigos de revistas e afins entrecortando os capítulos da
obra.
Não esquecendo também dos pontos
paralelos à trama principal, auxiliados pelos coadjuvantes, os
habitantes da vila e os preconceitos provincianos dos mais velhos,
revelando que a maldade, a ganância e a hipocrisia podem residir em
qualquer lugar.
Essas características do presente não
são gratuitas e partem de uma sutil análise sociológica entremeada nas
buscas (e respostas) dos personagens no passado. Na época do avô de
Sabela e de Fidel, a pobreza tinha índices elevados, principalmente na
região da Galícia, obrigando a imigração para países da América Latina e
Caribe.
Ardalén é uma história de
amores, ódios, frustrações, rivalidades, esperanças, encontros e
desencontros, na amplitude desses significados. O teor onírico, poético e
fantasioso é correspondido na belíssima arte, com técnicas mistas de
pintura. A expressividade e naturalidade lúgubre dos personagens são tão
importantes quanto os detalhes cênicos.
O nome do álbum corresponde ao batismo
do vento que sopra do mar para a terra nas costas atlânticas europeias.
Não tem um resumo melhor da história, conduzida ao bel-prazer da memória
e da busca de identidade, mesmo que seja norteada por uma rosa dos
ventos guardada numa velha caixa de lata para fortalecer as lembranças.
Um dos melhores lançamentos do ano, a edição só não ganha nota máxima em virtude de algumas escorregadas da Realejo em termos de editoração e revisão. Com formato 19 x 26 cm, capa cartonada com orelhas e papel couché, o que pode afugentar leitores é o preço alto, mesmo que valha a pena.
Em 2013, o álbum foi eleito a melhor obra espanhola no Salão Internacional de Quadrinhos de Barcelona, na Espanha, e arrebatou o Prêmio Ecumênico no Festival de Angoulême, na França. Frutos de um trabalho que levou três anos para ser produzido.
Assim como outra obra-prima de Prado que toca o tema marítimo (e precisa ser lançada no Brasil) – Traço de giz –, Árdalen vai
ficar por um bom tempo na memória, até que se embarque para velejar por
uma nova leitura, após os fragmentos da primeira sejam oxidados pela
maresia do tempo.
Como já disse o poeta baiano Waly Salomão (1943-2003), “A memória é uma ilha de edição”.
Título: Ardálen
Autor: Miguelanxo Prado
Páginas: 256 • Formato: 19 x 26cm •
Acabamento: capa cartonada •
R$ 120,00
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(Resenha publicada originalmente no site Universo HQ )
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