Deisy Mantovani é uma ilustradora de
embalagens e livros infantis que está fazendo sua primeira história em
quadrinhos, entre um freelancer e outro.
Junto com o seu buldogue francês Lino,
ela acaba de se mudar para um apartamento num bairro com suspeitas de
abduções alienígenas, por causa do solo rico em silício, o que reflete
densa energia do campo magnético da Terra, atraindo as naves de outros
mundos.
Enquanto trava a sua busca frenética por
trabalho, festas e romances complicados, Mantovani garimpa filmes de
ficção científica, vídeos do YouTube sobre ufologia e questionamentos filosóficos sobre a realidade.
A princípio, os fãs de ficção científica devem ser avisados que Bulldogma não é uma aventura do gênero. A obra se utiliza da sci-fi para traduzir toda uma realidade emocional embutida na protagonista.
Wagner Willian vai dando as “dicas” ao
longo da narrativa. Inclusive, as fichas técnicas de filmes, músicas,
livros e outros detalhes no rodapé das páginas, para facilitar a
“apresentação” ao leitor, que poderá ocupar sua bagagem cultural com
esses itens.
É a desconstrução do cotidiano da
protagonista – gerado como se fosse um alter ego do próprio autor –,
apoiada na construção desses artifícios artísticos, musicais, literários
e cinematográficos.
Tome como base um dos cartazes que está no apartamento de Mantovani: Jules e Jim (1962), clássico de François Truffaut (1932-1980). O filme faz parte do movimento francês Nouvelle Vague, iniciado no final dos anos 1950 e desaguando na direção contrária do que era imposto pelo cinema hollywoodiano na época.
Dentre as características do movimento
que rompeu com as tradições estéticas estão o tom confessional como um
“diário íntimo” (de acordo com o próprio Truffaut), a fragmentação
narrativa livre de convenções e a incorporação do acaso. Todos esses
elementos estão presentes em Bulldogma.
Atente também para um dos momentos
finais e importantes do álbum, que faz alusão ao final de outro clássico
(com toques autobiográficos) do realizador francês, Os incompreendidos (1959).
Assim que chega à nova morada, Deisy –
com sua sempre pronta e pulsante veia artística – pinta um cenário atrás
do sofá da sala. Essa ação aparentemente banal sinaliza outro
norteamento que é fragmentado na narrativa, o transcendentalismo.
Como o nome já indica, a corrente
“transcende” o empírico e o físico, enfatizando a percepção através da
consciência intuitiva sobre o racionalismo, além da exaltação ao
indivíduo nas relações com a Natureza e a sociedade. Aqui, o centro
urbano é um personagem fundamental.
Tais métodos alógicos da compreensão da
verdade estão presentes no cinema de David Lynch, na literatura de Henry
David Thoreau (1817-1862) e nas HQs de Daniel Clowes, todos de alguma
forma citados no álbum de Willian.
São dois mundos – uma realidade factual e outra sensitiva, como são definidas na narrativa – que, na verdade, são apenas um.
Quase tudo que é palpável na vida da freelancer
pode ser visto de forma racional, como as tretas do trabalho, a dúvida
numa parte metalinguística de sua HQ ou as desilusões amorosas. Estes
mesmos fatos e casualidades também geram o “mundo sensitivo”, onde os
simbolismos residem tanto nos elementos pop quanto no seu bichinho de
estimação, que traduz um valor afetivo, um refúgio para as agruras e
mazelas da vida.
Nesse sentido, pode-se desdobrar o
fractal em mais uma parte: a do cada vez mais presente mundo virtual,
que entorpece e substitui os sentidos e os relacionamentos,
respectivamente. Ela (2013), filme de Spike Jonze que traz à
tona essa discussão, é citado e o personagem vivido por Joaquin Phoenix é
inserido no meio urbano da obra.
Entrecortado por simulações de cartazes
que remetem à ficção científica, há um sem-número de referências famosas
e pouco conhecidas do público, que vai desde filmes como Invasores de Marte (1953), Inimigo Meu (1986) e Fogo no Céu (1993), passando pelas pinceladas de terror da polonesa Aleksandra Waliszewska, até o canal da internet de quadrinhos e cinema Pipoca e Nanquim.
Para quem está mais familiarizado com o cenário das HQs nacionais, também há muitos “figurantes” em
Bulldogma. Rogério de Campos, editor da
Veneta, os quadrinistas Marcello Quintanilha (autor do premiado
Tungstênio), Shiko (de
Lavagem), Juscelino Neco (
Parafusos, zumbis e monstros do espaço) e o casal Cristina Eiko e Paulo Crumbim (
Penadinho – Vida) e até integrantes da equipe do
Universo HQ, como Lielson Zeni, Zé Oliboni e Sidney Gusman são alguns dos “extras” presentes no álbum.
Dono de um traço despojado e solto,
Wagner Willian não traduz tudo nos seus desenhos, fazendo com que o
público participe da “leitura visual”. Sua narrativa ainda coloca
detalhes interessantes, como o topete do famoso personagem do belga
Hergé (1907-1983) para brindar ou as linhas de diálogos verticais,
envolvendo o espaço e até o buldogue Lino.
Sobre as questões editoriais, o livro apresenta capa cartonada com orelhas, papel off-set
de boa gramatura e impressão, além de uma pequena biografia do autor. O
ponto negativo vai para o trabalho de revisão, que deixou passar muitos
erros primários e palavras que não “casam” com a arte (algumas vezes, o
texto no visor do celular não está posicionado corretamente na tela,
“vazando”).
Vale frisar que não é a primeira aparição de Deisy Mantovani. A personagem está num dos contos ilustrados da coletânea Lobisomem sem barba (Balão Editorial), segundo lugar na categoria Ilustração do Prêmio Jabuti 2015.
Como bônus, o autor
produziu um site contendo
book trailers, cenas alteradas, desdobramentos,
easter eggs, bastidores e participações especiais, além da seção
Flerte da mulher barbada, na qual a própria Deisy Mantovani entrevista vários profissionais do universo dos quadrinhos.
Obra de fôlego (um calhamaço de 320 páginas, algo bastante incomum no mercado nacional), Bulldogma
é uma história em quadrinhos de difícil assimilação, que precisa ser
lida mais de uma vez para apanhar as nuances de sua narrativa ou
refletir em cima de seus simbolismos.
O leitor pode se ater mais aos
fragmentos racionais e realistas, mas as situações insólitas na HQ é que
vão procriar controvérsias, discussões e as sempre presentes
incompreensões.
Traduzindo melhor, tome como verdade uma
afirmação da própria protagonista no transcorrer da história: “Você
está muito mais preocupado em chegar a algum lugar do que simplesmente
estar lá”. Boa(s) leitura(s).
Título: Bulldogma
Autor: Wagner William
Páginas: 320 • Formato: 16 x 23cm •
Acabamento: capa cartonada •
R$ 59,90
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