Por Audaci Jr
“Nas ruas, as mulheres são como manchas
negras, que se movem flutuando. De vez em quando um rápido murmúrio, um
preço que se pergunta, depois se afastam deslizando… A partir de certa
idade seus corpos se preparam para desaparecer. E sob aqueles véus
negros parece não haver mais mulheres de carne e osso. Parecem pássaros
negros, inamistosos, inabordáveis”.
Esta é uma das descrições das mulheres
do Iêmen mostrada no álbum pelo italiano Ugo Bertotti, inspiradas pelas
imagens e entrevistas da fotojornalista também oriunda do país em forma
de bota, Agnes Montanari.
Assim como vários quadrinhos que se
aprofundam na cultura mulçumana, tão “distante” da ocidental, vista
geralmente pela sua superfície nos rodapés dos livros de História ou nos
segundos de imagens dos noticiários da TV, pouco se sabe sobre o Iêmen,
muito menos de suas misteriosas mulheres.
Como revela no seu posfácio, Montanari
descobriu o país árabe acompanhando o marido que estava em missão pela
Cruz Vermelha. A fotógrafa só sabia de características básicas do local,
que até podem soar desconhecidas pelo leitor: a Al Qaeda e seu
fundador, Osama Bin Laden, o PIB baixíssimo – um dos menores do mundo, e
armas fazem parte do cotidiano como o aparelho celular no Ocidente,
principalmente as AK-47 (duas por habitante, incluindo crianças e
recém-nascidos).
O mundo de Aisha reúne três
histórias sobre algumas dessas iemenitas que saem de casa vestindo dos
pés a cabeça o denominado niqab – ou nicabe –, o véu negro que revela
apenas os seus olhos. A vestimenta é frequente nos países da Península
Arábica como o Iêmen, mas também pode ser encontrado em outras nações de
tradição religiosa muçulmana.
Dono de um traço rústico e estilizado, lembrando até a arte da iraniana Marjane Satrapi em Persépolis,
Bertotti aponta que o hábito secular de trajar o niqab não saiu de moda
nos guarda-roupas de 95% das mulheres do Iêmen em decorrência da
obrigação, mais do que a própria tradição.
A primeira parte do álbum já exemplifica
isso de forma brusca, quando a garota que dá nome ao capítulo, Sabiha, é
vítima de violência doméstica por se debruçar na janela secretamente
pela manhã, sem o uso do niqab.
No segundo tomo, o leitor é apresentado a
Hammeda, uma senhora empreendedora de vários restaurantes e hotéis que
lutou para criar sozinha os filhos depois que o marido morreu, razão de
ser duramente criticada pela sociedade mulçumana. Nos anos 1960, ela
começou os negócios encarando o preconceito e alimentando soldados
durante a guerra civil.
Por fim, a terceira e mais longa, mostra
a jovem Aisha e outras iemenitas que a cercam no seu cotidiano.
Situações como frequentar um emprego no qual só existem homens no
ambiente e ser alvo de preconceitos, mesmo usando o véu, ou a pressão de
se casar o mais rápido possível são abordadas não só no traço de
Bertotti, mas nos registros fotográficos de Montanari, que também
aparece como personagem.
Ugo Bertotti , autor de O Mundo de Aisaha |
Tal narrativa “hibrida” – montando suas páginas com desenhos e fotos –remete à obra francesa O Fotógrafo (lançado por aqui pela Conrad),
que conta a jornada de Didier Lefèvre no Afeganistão acompanhando os
Médicos Sem Fronteiras. Ilustrada e adaptada por Emmanuel Guibert (autor
de A Guerra de Alan, publicada aqui pela Zarabatana) com diagramação de Frédéric Lemercier (veja as resenhas dos volumes 1, 2 e 3).
A grande diferença entre as abordagens é que O mundo de Aisha
sobrepõe balões às fotografias, mas igualmente serve para dar uma
“realidade” aproximada e de carne e osso para ambos os relatos. Com a
arte “preenchendo” e guiando as histórias, os cliques oferecem um choque
de veracidade documental.
O que fica mais evidente no decorrer das
três partes não é apenas a revolução silenciosa propriamente dita, na
qual a geração entrevistada tem a consciência de lutar para a próxima
não passar pelos mesmos obstáculos e preconceitos que elas enfrentaram.
Da mesma forma como foi revelador para a
fotojornalista, o leitor também passa a enxergar além do anonimato
dessas “manchas negras”, seja em virtude do uso do niqab, seja pela
trajetória violenta que essas mulheres passam.
A edição da Nemo
apresenta capa cartonada com orelhas, formato 17 x 24 cm, uma boa
impressão em papel pólen, biografia dos idealizadores e fotografias nas
últimas páginas. Apesar de ser uma obra de Ugo Bertotti, caberia
tranquilamente o nome de Agnes Montanari figurar ao seu lado na capa.
Afinal, as fotos são de autoria dela e suas entrevistas serviram de base
para O mundo de Aisha.
O único “escorregão” na revisão coube à
parte de agradecimentos, na última página, em que o quadrinhista oferece
o trabalho à esposa Raffaella Bertotti, que está grafado “Rafaela” (a
forma correta aparece no crédito fotográfico do autor, na orelha da
edição).
Logicamente, esse errinho não influência na nota ou na avaliação de um sempre bem-vindo e esclarecedor material europeu.
Título: O mundo de Aisha.
Autores: Ugo Bertotti e com fotografias e entrevistas de Agnes Montanari.
Formato: 17x24cm - 144 páginas
Preço: R$ 39,90
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(Resenha publicada originalmente no site Universo HQ )
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