Por Audaci Jr
David Small retrata em Cicatrizes (Leya/Barba Negra, 336 páginas) o despertar de seus
talentos artísticos durante uma infância de saúde fragilizada e de pais rígidos.
Se alguém perguntasse o que o pequeno David Small
queria ser quando crescesse, ele provavelmente responderia: “desenhista”. O
autor ganhou notoriedade ilustrando diversos livros infantis, mas até lançar
sua autobiográfica em quadrinhos, poucos sabiam o quanto foi tragicamente kafkiano sua própria infância.
Quando somos apresentados aos seus pais, logo
percebemos a fúria silenciosa da mãe, descontando nas portas dos armários da
cozinha; o pai, médico por formação, sempre descendo ao porão para descontar no
saco de boxe um dia inteiro de trabalho. O próprio David por sua vez se
expressava ficando doente, com problemas respiratórios.
Sempre pronto para diagnosticar e tratar as
enfermidades acometidas, o pai teorizava que usando doses de radiação poderia
curar sua asma. Com os anos passando, o quadrinista sentia, além do distante
amor materno e da ríspida educação patriarcal, era um caroso crescendo e se
alojando em sua garganta.
Aos 14 anos, finalmente realiza uma cirurgia
supostamente simples para a retirada da enfermidade. Ao acordar no hospital,
descobre que não consegue falar uma palavra sequer. Com uma de suas cordas vocais
removidas e uma imensa cicatriz ao longo de seu pescoço, David mergulha cada
vez mais no seu universo particular, injetado de criatividade que viria a
desaguar nas suas obras. Dois anos depois junta coragem para sair de casa com
apenas seu sonho de ser artista na bagagem.
Mesmo com o processo de “exorcizar” seus demônios
do passado, Small narra com tons melancólicos de cinza as cicatrizes
psicológicas desferidas pelas mazelas da vida. Desde segredos escondidos dos
pais até as visitas a casa ala João e
Maria da avó com sérios distúrbios mentais, com inesperados ataques violentos.
David é dono de um traço bonito, versátil e
elegante. Habilmente muda o estilo quando fala sobre o tempo do tataravô,
sucinta uma atmosfera assustadora quando quer ou ganha ritmo narrativo apenas
no silêncio de suas composições.
O quadrinista mostra que não precisa lotar páginas
com recordatórios para obter profundidade na história: simbolismos criativos como
fetos hospitalares ou o coelho branco de Lewis Carroll conduzem o tom que o
texto necessita. Uma verdadeira aula de narração visual.
A editora Leya, em parceria com a Barba Negra, faz
um excelente trabalho de editoração, que vai desde as capas “limpas”, colocando
as informações nas orelhas do álbum, até a impressão e tradução (de Cassius
Medauar), garantindo seu espaço no mercado dos quadrinhos com qualidade.
O lado negativo de Cicratizes é um demérito seu. Diante das profusões de quadrinhos
autobiográficos nos últimos anos, o desgaste na leitura é preciso como um corte
de bisturi. Cabe ao leitor abstrair somente a obra para poder desfrutá-la com
mais propriedade. Sem dúvidas, uma das melhores do ano de 2010.
Cicatrizes
Autor: David Small (Roteiro & Arte)
Formato: 23 x 18 cm - 336 páginas
R$ 46,00
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