quarta-feira, 17 de abril de 2024

A jornada do herói na HQ BEOWULF, por Vitória Lima

“A mais longa das jornadas começa sempre com o primeiro passo” (provérbio chinês)

Tive duas ricas e inesquecíveis experiências como professora de Literatura Inglesa: a primeira na UFPB, em \joão Pessoa, (entre os anos de 1970 e 1992) e a segunda na UEPB, em Campina Grande, (entre os anos de 2003 e 2013). Meus cursos eram iniciados, invariavelmente, com a apresentação aos alunos dos primórdios da literatura inglesa, da Idade Média, com o poema épico “Beowulf”, uma obra seminal dentro do panorama da literatura inglesa. Contudo, o interesse nesta obra está restrito aos estudiosos da história literária e cultural britânicas. Foi, portanto, com muita surpresa que encontrei um exemplar da obra, em uma feira de HQ, no Espaço Cultural, em João Pessoa. numa versão Graphic novel, em português, assinada por Santiago Garcia e David Rubin, traduzida por Alexandre Calliari, trazendo um primoroso e inspirado epílogo do espanhol de Madrid, Javier Olivares. Uma rica edição em cores, de tamanho 31 x 21 cm, capa dura, uma produção da Pancrom Indústria Gráfica, datada de novembro de 2018. É claro que por trás desse achado está o talento e a sensibilidade, diria até, o faro de antiquário do produtor cultural, empresário do ramo dos quadrinhos Manassés Filho, proprietário da Comic House, que hoje, infelizmente, está restrita ao meio on line, subsistindo em sua forma física, apenas quando participa de feiras de HQ.

Meu primeiro contato com o poema “Beowulf” deu-se nos idos da década de 1970, quando cursava mestrado na Universidade de Denver, Colorado, Estados Unidos. Foi um choque para mim, entrar em contato com aquela língua estranha, o Anglo Saxão, a língua em que o poema foi originalmente escrito. O poema conta a história do herói Beowulf, que luta para defender seu povo (os dinamarqueses) contra a fúria destruidora do monstro Grendel, que na obra é identificado como “o filho de Caim”.

A obra é um “prato cheio” para a aplicação das teorias de Joseph Campbell sobre a jornada do herói, que busca identificar o caminho perseguido pelo herói até atingir seu objetivo. No caso de Beowulf, acompanhamos o nascimento do herói, quando ele se oferece para defender os daneses, os súditos de Hrothgar, que festejam suas vitórias no salão festivo de Heorot. O herói se define como “Bewulf, filho de Ecgtheow, rei dos Wegmlunding, vassalo de Hygelac, rei dos Godos. Ele diz que liderou catorze nobres guerreiros através dos mares até aquela orla onde tinha chegado. A sua saga contra o monstro Grendel tem várias etapas e ele consegue derrotar o monstro em todas elas.

A leitura de “Beowulf” compensa e nos introduz no reino da coragem e da aventura, tão fértil e perseguido por escritores mais modernos, como Tokien e tantos outros depois dele, até os nossos dias.

Ainda dentro da tradição medieval inglesa temos Geoffrey Chaucer, com suas “Lendas da Cantuária’, com seu variado panorama de personagens menos heroicos, mais próximos do homem e da mulher comuns.



domingo, 14 de abril de 2024

Os 34 anos de Darkman - A vingança sem rosto, por Lucas Freitas


Bem, não exagero ao dizer que Sam Raimi é um de meus diretores favoritos.

Apesar de ter sido impactado desde cedo, como boa parte da geração que cresceu nos anos 2000, pelo papel de Raimi como diretor dos filmes do Homem-Aranha - a primeira versão, com Tobey Maguire no papel principal - foi só muito tempo depois que comecei a atentar não só no papel, mas também no estilo, do diretor. E isso graças a “Uma Noite Alucinante” (Evil Dead II, 1987).

Para quem nunca viu esse filme, ele é uma sequência/reboot do “A Morte do Demônio” (The Evil Dead, 1981), que nos apresenta a história de um grupo de jovens que fica preso em uma cabana no meio de uma floresta, sendo perseguidos pelos espíritos demoníacos invocados a partir da leitura do Necronomicon. Mas, enquanto o primeiro filme é um filme de terror no sentido mais tradicional, “Uma Noite Alucinante” parte para um misto de terror, humor negro e ação, apresentando praticamente a mesma história, mas adicionando novos elementos e alterando uma série de pontos.

No entanto, o que realmente me pegou nesse filme, e que me fez correr atrás de toda a filmografia de Sam Raimi, foi a energia que parecia pulsar do filme. Sendo um projeto realizado entre amigos de longa data, existia, de fato, uma grande diversão no período das filmagens, mas também é muito mais que isso. Com uma câmera extremamente fluída, Raimi é um daqueles diretores que conseguem levar o espectador por um passeio visual, colocando-o em movimento junto com seus personagens enquanto apresenta tomadas e transições únicas.  Não só isso, ele possuí um senso de timing e de ritmo espetacular, conseguindo contar uma história em um ritmo acelarado, mas que nunca chega a ser corrido, e alternando os momentos de humor, horror e ação com uma maestria única.


Essas características sempre acompanham os filmes do diretor que, mesmo em suas produções mais fracas, consegue criar uma experiência única e divertida, destoando sempre do feijão com arroz das grandes produções. De fato, tenho para mim que, mais do que um contador de histórias, Raimi é um apaixonado pelo cinema, e é essa paixão que ele sempre deixa aparecer em suas produções.


Mas então, toda essa introdução está aqui apenas para apresentar aquele que considero ser um dos filmes mais fascinantes do diretor mas que, ainda assim, não é tão conhecido ou comentado como a franquia Evil Dead ou  suas produções mais recentes, como o próprio Homem-Aranha ou o Arraste-me para o Inferno: Darkman.


Conhecido por aqui com o título de “Darkman - Vingança sem Rosto” (Darkman, 1990), o filme nos apresenta a história do cientista Peyton Westlake, que tem sua pesquisa sobre peles sintéticas brutalmente interrompida pelo ataque de uma gangue, que destrói seu laboratório. Apesar de sobreviver à explosão, Peyton é terrivelmente desfigurado pelo fogo, sendo submetido a uma cirurgia experimental que corta parte de seus nervos, impedindo-o, assim de sentir qualquer tipo de dor ou mesmo a sensação de tato. Por mais que isso possa lhe parecer uma benção, o tratamento que o livrou da dor traz, como efeito colateral, a perda de sua capacidade de regulação emocional, além de resistência e força sobre-humana em situações de grande estresse devido à liberação de adrenalina desregulada de seu sistema nervoso. Restaurando seu laboratório, o cientista parte então em busca de vingança, utilizando seus novos “poderes” e suas peles sintéticas - que não pode ficar muito tempo exposta à luz - ao mesmo tempo em que busca retomar a vida que perdeu.

E vamos ficar por aqui para evitar entrar no terreno dos spoilers.


Se você nunca viu Darkman, eu recomendo bastante a experiência. Apesar da trama em si ser algo relativamente simples, a atuação de Liam Neeson como Peyton Westlake já é, por si só, digna de ser vista. Aqui, o ator dá ao personagem um peso e uma gravidade memoráveis, uma vez que o ator dá um show nas transições repentinas e abruptas emocionais de seu papel, e isso sem jamais descambar para o ridículo ou para o muito exagerado.

Não só isso, a própria construção de mundo de Darkman é algo digno de nota. Numa época em que filmes baseados em quadrinhos ainda eram uma parte bem pequena do meio cinematográfico, é curioso ver como a inspiração dos quadrinhos é bem forte no filme, ainda mais para um personagem original. Tanto no estilo quanto na narrativa, é notável o quanto as histórias em quadrinhos influenciam a construção desse mundo, seja no drama de Peyton e em sua relação conturbada com Julie Hastings (Frances McDormand), ou mesmo no tom exagerado e nas ações caricatas de seus vilões. Estes, são um espetáculo à parte, mais parecidos com personagens tirados de das histórias de Dick Tracy, cada um marcado por maneirismos, tiques e tocs extremamente específicos.


E unindo tudo isso, temos o estilo único de Raimi, com sua câmera fluída, tomadas inusitadas, cortes e transições cuidadosamente calculados, e aquela energia frenética, maníaca, até, que sempre conseguimos ver em seus melhores momentos.

Bem, e se isso tudo ainda não foi o suficiente para te convencer a dar uma chance ao filme, considere que temos aqui uma planta baixa daquilo que o diretor fará anos depois em Homem-Aranha.


Mas isso será uma conversa para um outro dia.


Até a próxima!




sábado, 6 de abril de 2024

Ziraldo partiu, Senhor! , por Manassés Filho

 


Lá estava a notícia! Hoje, 06/04, às 15h, faleceu em casa, em um apartamento no bairro da Lagoa, na Zona Sul do Rio, o cartunista, Ziraldo.

Um dos meus primeiros pensamentos após lamentar a morte do grande Mestre, foi uma certa tranquilidade por saber que ele partiu dormindo. 


É estranho compor um texto sobre alguém que não se conhece, mas que de alguma forma se fez tão presente desde a minha infância. Sendo assim, descrever a genialidade de Ziraldo é uma tarefa homérica tanto por sua importância artística, diversidade de estilos e sua riqueza textual.


Nascido em 24 de outubro de 1932 em Caratinga (MG),era o mais velho de uma família com sete irmãos. Seu nome incomum era fruto da combinação do nome da mãe (Zizinha) com o nome do pai (Geraldo).

Desde criança despertou interesse pelas artes, e aos seis anos teve seu primeiro desenho publicado no jornal “A Folha de Minas”.

Esse primeiro contato entre sua arte e jornal veio a se consolidar em 1950, com o início de sua carreira ao publicar na revista “Era uma vez...” e quatro anos mais tarde, vem a produzir uma página de humor para o jornal “A Folha de Minas.


Em 1957, formou-se em Direito na Faculdade de Direito de Minas Gerais, em Belo Horizonte. No mesmo ano, entrou para o time das revistas “A Cigarra” e, depois, a icônica “O Cruzeiro”. Em 1958, casou-se com Vilma Gontijo, sua namorada tinha sete anos e com ela nasceram seus filhos Daniela, Fabrizia e Antônio.


Na década de 60, destacou-se por trabalhar também no “Jornal do Brasil”. Assim como em “O Cruzeiro”, publicou charges políticas e cartuns. São dessa época os personagens Supermãe, Mineirinho e o emblemático e ainda atual, Jeremias, O bom, que apresenta uma bem-humorada crítica à sociedade e seus bons costumes.

Um fato curioso nesse período, é que em paralelo a sua produção dos citados personagens, ele concretizou seu sonho de infância ao produzir de forma autoral suas histórias em quadrinhos que fazia uma grande homenagem a riqueza do folclore de nossa Terra Brasilis, nascendo assim a “Turma do Pererê”, que apresenta as aventuras de personagens como a como a onça, o jabuti, o tatu, o coelho e a coruja

Sua ampla e crítica visão em relação ao seu país, o conduziram a fundar com outros humoristas na mesma década o icônico “O Pasquim”, que com um misto harmônico entre textos, humor, ilustrações, deboche, crítica e personagens inesquecíveis, como o Graúna, os Fradins ou o Ubaldo, o semanário entrou na luta pela democracia e consolidou-se como um dos principais veículos a combater a ditadura militar no Brasil.


Para ter uma ideia da grandiosidade da publicação, o grupo era composto por nomes como: Millôr Fernandes, Henfil, Jaguar, Tarso de Castro, Sérgio Cabral, Ivan Lessa, Sérgio Augusto, Paulo Francis Chico Buarque, Antônio Callado, Rubem Fonseca, Odete Lara, Gláuber Rocha e diversos intelectuais cariocas. E com essa junção de diversos talentos e temas, O Pasquim, transformou-se em um grande fenômeno editorial que inicialmente teve uma tiragem de 20 mil exemplares e chegou a atingir a marca de mais de 200 mil em seu auge, em meados dos anos 1970, se tornando um dos maiores fenômenos do mercado editorial brasileiro.

Mas uma publicação como essa não passaria em branco para órgãos de censura da época, e um dia depois do AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, Ziraldo foi detido em casa e levado para o Forte de Copacabana, mas essa ação não abrandou sua veia crítica.


Seu maior sucesso, “O Menino Maluquinho”, saiu em 1980 desde sua primeira publicação, teve 129 edições, foi publicado em mais de 10 países, vendeu mais de 4 milhões de exemplares. Considerado um dos maiores fenômenos do mercado editorial brasileiro em todos os tempos e que foi adaptado para o cinema em 1995, ganhou uma continuação em 1998 intitulada de Menino Maluquinho 2 - A Aventura, em 2006, ganhou  a série, Um Menino Muito Maluquinho, com 26 episódios, sendo exibida pela TV Brasil e  2022 foi produzida uma série animada para a Netflix que acabou concedendo uma indicação ao Emmy 2023 na categoria “Melhor Animação Infantil”.

Entretanto, Ziraldo, era um multiartista com produções que vão além das HQs, em 1969, publicou seu primeiro livro infantil, “FLICTS”. Em 1979, passou a se dedicar à literatura para crianças com obras que mesclavam o lúdico e o educacional como “O alfabeto do Ziraldo” e mais o recentemente o belo e poético “Menina Nina - Duas Razões para não chorar” que foi escrito para ajudar a explicar para a neta Nina sobre a morte da avó, Vilma, que foi mulher do cartunista.


Outro ponto da carreira pouco conhecida de Ziraldo, foram as incríveis composições de cartazes de filmes nacionais durante os anos 60, entre eles, estão para o filme “Os Fuzis” (1962), de Ruy Guerra; “Assalto ao Trem Pagador” (1962), de Roberto Farias; “Boca de Ouro” (1963), de Nelson Pereira dos Santos; “Todas as Mulheres do Mundo” (1966), de Domingos de Oliveira. 

O mais interessante desta fase é que muitos deles passam longe de seu característico estilo de desenho e denotam sua versatilidade,

Porém, entre suas obras, uma delas chama a atenção por sua ousadia, o imponente Mural do Canecão, por muitos anos a principal casa de shows do Rio de Janeiro e uma das principais do Brasil. 


O mural foi produzido em 1967, ao longo de seis meses de trabalho, e ainda hoje chama a atenção pelo estilo inspirado nos traços de pintores como Pablo Picasso e Cândido Portinari.


Nele podemos ver uma "Santa Ceia" regada a cerveja, em um cenário carioca. Na época, em 1967, em pleno regime militar, a obra foi alvo de críticas e considerada transgressora.


E na fala do próprio Ziraldo “Tem a Arca de Noé com os bichos, tem os Arcos da Lapa, tem a vista do Papa ao Rio de Janeiro. Tem as cariocas chegando para a festa, animadíssimas. Tem o cara celebrando na mesa de bar. Tem o sujeito de porre, tem o cara dando cachacinha para o santo. Tem toda uma visão brasileira sobre o ato de beber. Não tem ninguém comendo. Estão todos comemorando. Tem muitos brindes” diz Ziraldo.

Considerada uma das maiores obras murais do país, com 32 metros de largura por 6 metros de altura, o painel é considerado uma das obras primas de Ziraldo, um homem que viveu e produziu intensamente seu amor à arte e que mesmo nos deixando, seu legado acompanhará inúmeras gerações.



quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Spawn, O soldado do inferno volta a ser publicado no Brasil, por Lucas Freitas


 Na Trilha da Cria do Inferno


Durante muito tempo, fiquei na dúvida sobre como deveria começar esta coluna - um problema que, odeio admitir, é um tanto quanto recorrente no meu processo de criação. Não só pelo começo do texto em si, mas também pelo próprio tema. Afinal, por mais que seja um prazer falar sobre quadrinhos, cinema e livros, em algum momento, temos que escolher um tema em particular para elaborar o texto, e é nessa ocasião que enfrentamos o famoso Paradoxo da Escolha.

Mas não é sobre isso que irei falar hoje.


Enquanto pensava e repensava sobre o que poderia ser meu tema, vi a notícia, ainda no dia 31/01, de que a Panini Comics iria relançar o Spawn no Brasil, e foi assim que, quando menos esperava, consegui meu tema.


Para quem não conhece o personagem, Spawn é a criação do artista Todd McFarlane, e é o alterego do tenente-coronel Al Simmons que, após ser traído pelo seu chefe, é morto e enviado para o Inferno, onde vende sua alma por uma chance de reencontrar sua esposa, Wanda. Mas como em todo pacto fáustico, existe um porém: apesar de ser trazido de volta à vida, Simmons volta cinco anos após a sua morte, em um corpo completamente carbonizado, e descobre que sua esposa não só está casada com seu melhor amigo, mas que também tem uma filha com ele. Como se isso não fosse o suficiente, como Spawn, Simmons é agora um Soldado do Inferno, tendo que desempenhar um papel importante na batalha final entre as forças do Paraíso e do Inferno, ainda que a perspectiva de cumprir sua parte da barganha após ser enganado não lhe agrade muito.


O que se segue é uma série de confrontos entre demônios, anjos, mafiosos, agências do governo, gorilas cibernéticos e o que quer que Todd McFarlane estivesse querendo escrever na época e que pudesse ser traduzido de forma visualmente excitante para o público adolescente facilmente impressionável no boom da image Comics dos anos 90.

Apesar de não ter pego esse boom inicial, eu também já fui um adolescente facilmente impressionável em algum ponto, e, assim como tantos outros antes e depois de mim, me vi capturado pelo mundo sombrio e miserável da Cria do Inferno.


Curiosamente, assim como no caso do próprio Al Simmons, esse foi um encontro de cartas marcadas desde o início.


Desde pequeno, sempre fui fascinado por esse universo do horror que hoje é meu ramo de escrita. Dos desenhos animados como Coragem, o Cão Covarde a filmes como O Estranho Mundo de Jack, o terror e o estranho sempre estiveram lá, por mais irônico que possa parecer para alguém que não é, nem de longe, um paradigma de coragem e bravura. Ainda assim, como resistir ao seu chamado? Quanto mais aterrorizante a criatura, quanto mais terrível o filme, maior a curiosidade que ele provocava. E foi assim que o que começou com um interesse de infância foi crescendo e ganhando forma também em outras mídias, como nos contos de Poe e Lovecraft, e nos filmes com suas infinitas Sexta-Feiras 13 e Mortes do Demônio.

Nos quadrinhos, esse fascínio me levou a conhecer personagens como o Motoqueiro Fantasma - outro caso clássico de pacto fáustico - e o Monstro do Pântano, por exemplo, assim como o próprio Cruzado de Capa e sua Gotham cheia de sombras opressivas e gárgulas onipresentes, esta já uma velha conhecida desde os filmes de Tim Burton.


Ainda assim, por maiores que fossem os mestres que passaram por cada um desses títulos, nenhum teria como ter me preparado para o que estava para encontrar em Spawn.


Com uma arte suja e violência visceral, McFarlane apresentou um mundo marcado pela corrupção, seja dos ambientes físicos, como nos becos imundos onde Spawn faz sua morada, seja moral, através das instituições e líderes mais interessados em seu próprio bem-estar e prazer, indiferentes ao sofrimento que causam aos demais, contanto que seus desejos possam ser realizados. E é nesse contexto que surge a Cria do Inferno, ele próprio uma personificação dessa corrupção, preso numa rede de intrigas e violência praticamente infinitas. Mas, longe de ser um redentor de seu mundo, Simmons segue a mesma lógica, mais preocupado em realizar seus próprios objetivos do que em proteger ou salvar as vidas que se encontram em perigo.


E se o mundo mortal não oferece qualquer tipo de paz ou perspectiva de redenção, o mesmo vale para o pós-vida, onde ambos os lados, sejam o Paraíso ou o Inferno, se equivalem em sua moralidade distorcida, preocupados demais em vencer seus oponentes para se importar com as consequências de suas ações.

Mas, por mais importante que tenha sido a participação de McFarlane na criação desse mundo, será apenas com a chegada do grande Greg Capullo, com seu traço pesado e estilizado, que esse universo sombrio, sujo e miserável alcançará sua forma definitiva, sendo dele a concretização de toda a estilística que representa o Spawn e seu universo.


Se falo muito na arte e na ambientação da série, é porque, infelizmente, esta é de longe um de seus pontos altos. Por mais que adore o personagem, é inegável que, na grande maioria das vezes, ele foi vítima do efeito Image - onde a arte incrível prevalecia sobre a substância das histórias, o que provocou coisas, digamos, desastrosas.


Não que ele só tenha histórias ruins, algumas das histórias do próprio McFarlane, em particular as 5 edições iniciais, apresentam bem o personagem e seu mundo, posicionando-o de modo claro em relação aos demais heróis do mercado. O começo de sua primeira jornada pelo Inferno também é digna de nota, assim como a passagem de Brian Holguin que passará a auxiliar o Todd na elaboração dos roteiros a partir da edição 71. Ainda assim, Spawn talvez seja um dos personagens com uns dos piores históricos em termos de história que me vêm em mente quando penso nisso.


Ainda assim, por mais canhestras que essas histórias pudessem ser, a arte que construiu Spawn, com seus becos imundos, capas longas e esvoaçantes, sombras onipresentes e abominações de todos os tipos foram - e ainda são - um parto cheio para esse hoje já não tão jovem admirador do terror, de modo que não é sem uma certa alegria que comemoro a volta do Soldado do Inferno ao meio editorial brasileiro.

E enquanto esse retorno não se concretiza, permanecemos aqui, seguindo a trilha de corpos deixada pela Cria do Inferno…


Até a próxima!





sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Cinema LGBTQIA+, por Rita Barbosa

 

 

Circumstance é um filme de 2011, de estreia da diretora, Iraniana-Americana, Maryam Keshavarz, que apesar de ter sido filmado no Líbano, tem sua narrativa desenvolvida no Irã moderno.

    Atafeh Hakimi (Nikohl Boosheri) é uma jovem de 16 anos de uma família rica de Teerão, no Irã. Shireen (Sarah Kazemy),  uma órfã cujos pais eram anti-revolução.  

Também temos o irmão de Atafeh, Mehran  (Reza Sixo Safai), ex-viciado em drogas, que literalmente troca o vício das drogas  pelo fanatismo religioso. Mehran é peça chave para o clima angustiante presente em  grande parte do filme.

    Apesar de ter sido pouquíssimo divulgado, Circumstance vai  muito mais além, do que a princípio esperamos encontrar. Se você procura uma  história de amor para aquecer seu coração, pare por aqui! Circumstance é um tapa em  nosso rosto, ou um soco no estômago, ele  nos presenteia com o tipo de história que a  todo momento nos faz pensar: " como assim!?", que nos faz pausar o filme diversas vezes para  respirar fundo, nos dando um choque de realidade de que isso existe, e que sim, as mulheres  passam por tudo isso e mais um pouco nessas regiões. Maryam Keshavarz conseguiu fazer algo  surpreendente, abordando um tabu em um país que não tolera sua manifestação, muito menos  permite a adaptação cinematográfica. E ela fez isso não apenas graficamente, mas mesclando sensualidade a realidade dura e crua do Irã islâmico! O design de produção e a atuação do elenco entregam uma credibilidade que dá a toda a produção uma sensação de autenticidade difícil de alcançar.



    Não pretendo dar spoilers, mas quando estamos assistimos, Circumstance, temos a todo o momento a incomoda sensação de que algo desagradável vai acontecer com as protagonistas, a  incomoda sensação de que cada passo dos personagens estão sendo vigiados, algo que acredito,  foi intencional da Diretora, como uma crítica ao sistema opressor vivido pelo País desde a  revolução de 1979, onde o Irã tornou-se Estado Islâmico, e aqui vai outra dica, reparem nos mínimos detalhes, pois ela nos permite observar e sentir a hostilidade presente nessa realidade  nos mínimos detalhes do filme. Observamos no filme a luta entre o conservadorismo e a independência, e o quão desigual são os oponentes. Infelizmente, Circumstance não recebeu a atenção e divulgação merecida, poucos outros filmes tiveram a coragem de abordar assuntos tão polêmicos e importantes a respeito de uma sociedade tão fechada e repressora, e uma das  consequências desse ato de coragem foi o filme e os atores serem banidos do Irã desde seu  lançamento. 



    O fato é, um filme tão revelador como este, dirigido por uma mulher, sobre duas amantes, ocorrendo no conservador Oriente Médio merece nosso tempo, atenção e olhar crítico. Então é  isso meu caro leitor, prepare as lágrimas, segure os ímpetos de revolta que surgirão durante o filme,  a ressaca moral que você muito provavelmente irá sentir no final, e bom filme! 


"Circumstance".
Estados Unidos/Irã,, 2011.

Direção & Roteiro: Maryam Keshavarz. 
ElencoSarah Kazemy, Nikohl Boosheri, Reza Sixo Safai

Onde ver: MUBI e Google Play








quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Os moídos de Samuel Gois, por Vitória Maria



 “O MUNDO É UM MOÍDO” DE SAMUEL DE  GOIS

por Vitória Lima

O intertexto original deste livro de Samuel de Gois, a música de Cartola, que está insinuado no próprio título do livro, “O mundo é um moído”. A intertextualidade não é nenhuma novidade no mundo literário e é amplamente empregado pelos mais diversos criadores. No texto original, o samba de Cartola,  temos “o mundo ´é um moinho”, o que nos conduz diretamente a outro texto, o clássico “Don Quixote”, de Cervantes. Este intertexto se revela e multiplica pelas páginas do livro, através das relações que se desmancham, que são retratadas. 

Diz Cartola:

“Ainda é cedo amor

Mal começaste a conhecer a vida

Já anuncias a hora de partida

Sem saber mesmo que rumo irás tomar.”

E ainda:

“Presta atenção, querida,

Embora saiba que estás decidida

Em cada esquina cai um pouco a sua vida

Em pouco tempo não serás mais o que és.”


Nos versos seguintes, o intertexto se revela, quando o sambista diz:


Ouça-me bem, amor, presta atenção,

o mundo é um moinho

quando notares estás à beira do abismo,

abismo que cavaste com teus pés.”


Nos versos acima, os intertextos que alimentam o livro de De Gois, o belo samba de Cartola e a obra imortal de Cervantes, se entrecruzam através da palavra moinho, que nos remete  fonética e inevitavelmente a moído, do texto de De Gois... No caso do texto de De Gois, o moído se refere mesmo à relação que se finda, que se esvai dolorosamente no decorrer do livro, produzindo o sofrido moído de que fala o autor. 

Foto: Thaïs Gualberto

Thaïs Gualberto através da sua Editora Guilhotina ficou encarregada da cuidadosa edição e diagramação do livro, que foi revisado por Audaci Junior, editor do Caderno de Cultura do jornal A União, que também publicou erudito artigo no dia 19 de agosto de 2023 sobre o assunto. Nesse artigo Audaci revela seu profundo conhecimento e intimidade com o mundo dos quadrinhos, buscando nomes e referências pertinentes ao mundo em questão, o que já está sugerido no próprio texto de Samuel, que passeia desde as cartas do tarot até os personagens da mitologia grega, como a Medusa e a Mona Lisa de Leonardo da Vinci. Todo isso revela o amplo espectro por onde se movimenta o quadrinista, além das referências intrínsecas contidas no texto, amplamente discutidas por Audaci Junior no seu texto publicado.

Capa Definitiva - O mundo é um moído

A caprichada edição teve o apoio da Catarse e está à venda na Miramar Livros ou sua loja virtual clicando aqui.

Boa leitura!